Por Arthur Franco
Memorial de Maria Moura chegou às minhas mãos de uma forma
totalmente repentina. Antigo assinante da Folha de São Paulo enquanto ainda
morava no Brasil, um belo dia a Livraria da Folha resolveu me presentear com um
exemplar do último romance de Rachel de Queiroz. Um livro de capa dura, com uma
foto chamativa. O resumo na primeira passada de olhos não me chamou a atenção.
Uma mulher no século XIX que desafiou a sociedade, venceu a miséria e conseguiu
recuperar tudo o que importava para uma mulher naquele tempo: família, honra e
terra.
Mas mesmo assim alguma coisa me fez querer destrinchar essa
tão sublime personagem, criada na década de 1990 pelas mãos da primeira mulher
a ingressar na Academia Brasileira de Letras.
Narrado em primeira pessoa, as descrições dos acontecimentos
variam entre o ponto de vista de Maria Moura; de Marialva, sua prima; e do Beato
Romano.
Com apenas 17 anos, Maria Moura vê sua vida se transformar
pesarosamente: encontra a mãe morta, é violada pelo padrasto e vê as terras de
sua família caírem nas mãos dos ambiciosos primos. A fome é grande, a pobreza é
maior ainda. Determinada a sobreviver de toda maneira, manda matar o padrasto,
foge, organiza roubos e vira chefe de um bando de jagunços. Mas Moura não é só
ferro e fogo. É paixão, encontrada nos braços de Duarte. E também de Cirino. É
sexo, é carnal, “amor desesperado, furioso, que doía, machucava; amor de
dois inimigos, se mordendo e se ferindo, como se quisessem que aquilo acabasse
em morte (...) “. Mas é também desapontamento, raiva, dor, perdida na
traição de Cirino à casa forte. É uma mulher forte, destemida, que usa faca na
bainha da calça de homens que traz no corpo. É o retrato do Nordeste da seca,
da fome, do povo que luta conta o tempo, contra a vida e a morte, contra o
pouco de cada dia.
Rachel de Queiroz deixa o romance em um estado de suspensão nas
suas últimas páginas (recurso também utilizado por Saint-Exupéry, no final de O
Pequeno Príncipe). O leitor não sabe o que acontecerá/aconteceu com os protagonistas.
Vida e morte se aliam em um último embate, se identificando na coragem de Moura
contra os primos, na luta final por aquilo que a pertence.
Maria Moura, honrando a família, os antepassados, as terras,
a coragem e o pai, decide buscar tomar de assalto o que é seu por direito. Duarte
ainda tenta apaziguar: “Ainda está na hora de mudar de idéia, Sinhá. Vai ser
uma luta muito dura, com esses homens traquejados para matar. Não é briga para
mulher. E se lhe matam?” Mas Maria não vacila e honra a vontade de mudança
que carrega no peito: Se tiver de morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando
aqui eu morro muito mais.
Estupendamente um livro forte, que vai ao fundo das questões
mais corriqueiras. Expõe o olhar de uma mulher simples frente à ganância, à
fome, às necessidades e às virtudes humanas, que busca enfrentar o domínio de
uma sociedade regida por homens. Rachel de Queiroz traz uma obra envolvente,
mas ao mesmo tempo simples e que tem como fundo a questão do ser humano como
personagem do mundo frente às questões da vida e da morte. Tão envolvente e
intuitiva que até virou minissérie da Rede Globo, com Glória Pires no papel de Maria Moura. Grandioso, digno de
ser a obra prima de Rachel de Queiroz.
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