sábado, 4 de fevereiro de 2012

Nem só de homens se faz a coragem.

Por Arthur Franco

Memorial de Maria Moura chegou às minhas mãos de uma forma totalmente repentina. Antigo assinante da Folha de São Paulo enquanto ainda morava no Brasil, um belo dia a Livraria da Folha resolveu me presentear com um exemplar do último romance de Rachel de Queiroz. Um livro de capa dura, com uma foto chamativa. O resumo na primeira passada de olhos não me chamou a atenção. Uma mulher no século XIX que desafiou a sociedade, venceu a miséria e conseguiu recuperar tudo o que importava para uma mulher naquele tempo: família, honra e terra.

Mas mesmo assim alguma coisa me fez querer destrinchar essa tão sublime personagem, criada na década de 1990 pelas mãos da primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. 

Narrado em primeira pessoa, as descrições dos acontecimentos variam entre o ponto de vista de Maria Moura; de Marialva, sua prima; e do Beato Romano. 

Com apenas 17 anos, Maria Moura vê sua vida se transformar pesarosamente: encontra a mãe morta, é violada pelo padrasto e vê as terras de sua família caírem nas mãos dos ambiciosos primos. A fome é grande, a pobreza é maior ainda. Determinada a sobreviver de toda maneira, manda matar o padrasto, foge, organiza roubos e vira chefe de um bando de jagunços. Mas Moura não é só ferro e fogo. É paixão, encontrada nos braços de Duarte. E também de Cirino. É sexo, é carnal, “amor desesperado, furioso, que doía, machucava; amor de dois inimigos, se mordendo e se ferindo, como se quisessem que aquilo acabasse em morte (...) “. Mas é também desapontamento, raiva, dor, perdida na traição de Cirino à casa forte. É uma mulher forte, destemida, que usa faca na bainha da calça de homens que traz no corpo. É o retrato do Nordeste da seca, da fome, do povo que luta conta o tempo, contra a vida e a morte, contra o pouco de cada dia. 

Rachel de Queiroz deixa o romance em um estado de suspensão nas suas últimas páginas (recurso também utilizado por Saint-Exupéry, no final de O Pequeno Príncipe). O leitor não sabe o que acontecerá/aconteceu com os protagonistas. Vida e morte se aliam em um último embate, se identificando na coragem de Moura contra os primos, na luta final por aquilo que a pertence. 

Maria Moura, honrando a família, os antepassados, as terras, a coragem e o pai, decide buscar tomar de assalto o que é seu por direito. Duarte ainda tenta apaziguar: “Ainda está na hora de mudar de idéia, Sinhá. Vai ser uma luta muito dura, com esses homens traquejados para matar. Não é briga para mulher. E se lhe matam?” Mas Maria não vacila e honra a vontade de mudança que carrega no peito: Se tiver de morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui eu morro muito mais.

Estupendamente um livro forte, que vai ao fundo das questões mais corriqueiras. Expõe o olhar de uma mulher simples frente à ganância, à fome, às necessidades e às virtudes humanas, que busca enfrentar o domínio de uma sociedade regida por homens. Rachel de Queiroz traz uma obra envolvente, mas ao mesmo tempo simples e que tem como fundo a questão do ser humano como personagem do mundo frente às questões da vida e da morte. Tão envolvente e intuitiva que até virou minissérie da Rede Globo, com Glória Pires no papel de Maria Moura. Grandioso, digno de ser a obra prima de Rachel de Queiroz.




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